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Como uma agência de tradução latinoamericana conseguiu se manter no furacão da pós-modernidade

Marcos Chiquetto 2 maio 2023

Nossa empresa de traduções brasileira foi fundada em 1985, fazendo traduções de inglês para português. Um de nossos primeiros clientes, que mantemos até hoje, foi a HP.

Em 1985 começamos a trabalhar com a HP, traduzindo manuais de calculadoras eletrônicas, como a icônica HP 12C

Naquele início de nossa trajetória, fornecíamos também traduções para outras empresas globais como Sega, Kodak e Xerox. Na verdade, nossos clientes eram as filiais brasileiras dessas empresas, que contratavam nosso serviço aqui em nosso país, com contratos de trabalho brasileiros e pagamentos em moeda brasileira. A tradução ainda era um negócio basicamente local.

O ano de 1994 trouxe uma novidade que prenunciava a grande virada dos anos seguintes: a HP diminuiu a contratação de traduções por sua filial no Brasil, passando a trabalhar com uma agência multilíngue baseada nos Estados Unidos. Por indicação da própria HP, essa agência continuou enviando para nós as traduções para português, tornando-se, assim, nosso primeiro cliente internacional.

Em 1997, começamos a trabalhar com nosso segundo cliente internacional, a Symantec, fazendo as traduções do Norton Antivirus. Os trabalhos eram enviados da Irlanda, que naquele momento era um hub mundial do mercado de traduções.

No final da década de 1990, Dublin era um hub mundial de traduções

Até então, as únicas ferramentas de software usadas por tradutores eram os programas de comunicação e os editores de texto.

Em 1998, a Symantec anunciou que iria começar a usar uma nova ferramenta de software, um certo sistema chamado “Trados”, desenvolvido pela empresa alemã Trados GmbH, e que nós teríamos que aprender a usar essa ferramenta. Para isso, um de nós teria que fazer um curso em Dublin, na Irlanda.

Lá fui eu fazer o treinamento. O curso foi fraquíssimo e mal organizado, a professora era horrível e o coffe break era pior ainda, com uma linguiça intragável. Mesmo assim, deu para entender a ideia geral, e eu voltei para o Brazil como um dos primeiros profissionais em nosso país a dominar uma ferramenta de memória de tradução (veja nosso artigo sobre memória de tradução). Mais tarde, aquele grupo alemão vendeu a Trados, que hoje pertence à SDL.

Capa e página inicial do manual do primeiro Trados adquirido por nós em 1998. Naquele tempo, ainda não se fazia download de software. Os pacotes de software eram produtos físicos comprados em lojas tradicionais.

No final da década de 1990, começamos também a trabalhar com várias agências de tradução multilíngues baseadas nos EUA e no Reino Unido. Muitas delas eram empresas pequenas, onde os donos gerenciavam projetos. Pelo nosso lado, eu também ainda fazia muitas traduções e gerenciava projetos.

Quando começamos a trabalhar com agências multilíngues, muitas eram ainda empresas pequenas, onde os donos eram os gerentes de projeto. (Imagem: TecMundo)

Nessa mesma época, a HP desistiu de trabalhar com uma agência de traduções externa e criou sua própria agência, o ACG (Application and Content Globalization group), com gerentes de projeto baseados em vários países, principalmente na China. Até hoje, depois do desmembramento da HP em três empresas, ainda somos fornecedores do ACG, que pertence à empresa-filha DXC.

E como era o gerenciamento dos projetos em nossa empresa naquela época? Era simples. Nossos clientes simplesmente enviavam os arquivos a serem traduzidos, no formato original, e nós criávamos os projetos no Trados, gerenciávamos as memórias de tradução para cada cliente, e entregávamos os arquivos prontos.

Vou dizer agora uma coisa que vou retomar no final deste artigo:

Por volta do ano 2000, o workflow dos nossos projetos era inteiramente definido por nós. Nós seguíamos nosso próprio método de trabalho.

De lá para cá transcorreram duas décadas. O que mudou?

  • No mercado de traduções, a contratação de traduções pelas empresas globais deixou de ser feita localmente por suas filiais, centralizando-se nas agências multilíngues (veja nosso artigo sobre as traduções no mundo pós-moderno).
  • Entre as agências multilíngues vem ocorrendo também uma forte concentração econômica, um processo no qual agências menores são compradas por grandes grupos, que desenvolvem novas tecnologias e lançam continuamente novas ferramentas e novos processos.
  • Além das ferramentas de memória de tradução, a tradução automática também passou a ocupar uma posição central no mercado, proporcionando redução de custo
  • Nos países onde os produtos são vendidos, há uma demanda de tradutores autônomos ou agências locais, para trabalharem como parceiros das multilíngues, fazendo a tradução para o idioma de cada país.
As agências multilíngues buscam hoje fornecedores locais para os diversos idiomas, que podem ser tradutores autônomos ou agências locais

Para as agências multilíngues, cada uma das opções apontadas na imagem acima tem suas vantagens de desvantagens:

  • Quando a parceria é com uma agência local, o custo nominal do fornecedor é maior. Como contrapartida, uma vez escolhida uma agência de confiança, a multilíngue vai gastar pouco com gerenciamento: basta enviar o projeto para o fornecedor, informando a data de entrega e dando as instruções, e receber tudo pronto no dia certo.

Cada agência multilíngue tem que avaliar os pontos positivos e negativos dessas soluções e optar por uma delas. No caso das agências que começaram a trabalhar conosco nos anos de 1990 e 2000, a opção foi claramente a segunda, pois elas são nossos clientes até hoje. Mesmo tendo um custo nominal maior do que teriam com tradutores autônomos, elas preferem trabalhar conosco.

E o que essa mudança significou para as agências como a nossa? Eu apontaria estes pontos principais:

  • O perfil do nosso cliente mudou radicalmente. Hoje, temos poucos clientes diretos no Brasil. A grande maioria dos nossos clientes são agências multilíngues globais.
  • Nossos gerentes de projeto, em vez de atenderem clientes finais, se especializaram em trabalhar com seus colegas de agências multilíngues. Eles já sabem os tipos de problema enfrentados por eles e agem proativamente para resolvê-los.
  • Aqui vou retomar a frase que escrevi em negrito acima, sobre o método de trabalho. Cada uma das agências de tradução com as quais trabalhamos tem seu próprio método de trabalho, suas próprias ferramentas e seu próprio workflow. Algumas usam as ferramentas SDL, outras usam memoQ, Déjà Vu ou Word Fast. Algumas usam plataformas on-line de tradução como Wordbee. Outras usam plataformas de gerenciamento como Plunet. Cada uma usa uma máquina de tradução automática. Ainda há aquelas que usam ferramentas proprietárias desenvolvidas especialmente para elas. Cabe a nós entrarmos da forma mais suave possível nesses workflows, sem introduzir problemas. O resultado é que uma empresa como a nossa não segue mais um único workflow. O que fazemos é aprender as ferramentas de cada um de nossos clientes para podermos nos encaixar em seus respectivos workflows. Nos tornamos especialistas em utilizar diversas ferramentas e seguir diferentes métodos.

Foi dessa forma que conseguimos atravessar o furacão das últimas décadas. Desenvolvemos a capacidade de nos adaptarmos aos diversos processos de nossos clientes, participando deles de forma imperceptível. Do ponto de vista dos gerentes de projeto, o trabalho simplesmente dá certo e eles querem continuar conosco.

Bem, é isso. Contei nossa história. Não é fácil sobreviver no oceano perigoso da pós-modernidade, mas, até aqui, ao longo de 37 anos, estamos navegando.

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