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Três problemas que infernizam a vida de um tradutor de software

Marcos Chiquetto 28 abr 2023

Escrevendo um artigo sobre filmagem de veículos em movimento, precisei recortar um vídeo, para usar somente um trecho curto. Não tenho prática nesse tipo de operação, mas sabia que meu notebook novo tinha uma ferramenta de edição de vídeo. Encontrei a ferramenta e abri com ela o arquivo de vídeo.

— Legal, pensei, isso vai ser rápido! Só preciso agora descobrir como recortar.

Passeando pelos menus, logo entendi que a ação de recortar o vídeo como eu queria era denominada “Aparar” naquele software.

Até aí, tudo bem.

Depois de algumas tentativas e erros, com a impaciência de quem quer usar o software só para fazer uma coisinha, sem ter que aprender tudo, cheguei à janela de aparar vídeos. Então, me deparei com isto:

Bem, “Duração” me pareceu algo bem simples de entender. Provavelmente se referia ao tempo de duração do recorte.

Beleza. Vamos em frente.

Abaixo de “Duração”, vi estas expressões, cada uma com um marcador de tempo e um fotograma do vídeo:

  • Na posição
  • Fora da posição

Aí a coisa encrespou. O que seria isso? Porquê haveria um tempo “na posição” e um tempo “fora da posição”? Percebi que a operação não seria tão simples assim. Seguindo então a prática usual da pós-modernidade, em vez de perder tempo lendo algum tipo de explicação, que certamente estava disponível na Ajuda do programa, saí dando tiro no escuro. Experimentando aqui e ali, logo entendi que o campo “na posição” mostrava o instante em que o corte começava, e o campo “fora da posição” mostrava o instante em que o corte terminava. Depois disso foi fácil, recortei o trecho desejado e pronto.

Mas fiquei remoendo aquela história. Afinal, por que esses instantes se chamariam “na posição” e “fora da posição”?

Bem, já traduzi dezenas ou centenas de pacotes de software e logo desconfiei que ali havia um erro de tradução.

Procurei no YouTube um tutorial em inglês sobre o mesmo software e ali pude ver esta tela:

Aí vemos que os nomes desses campo em inglês são “In Position” e “Out Position”, significando as posições de entrada (in) e saída (out) do recorte. As traduções seriam “Posição de entrada” e “Posição de saída”. Simples, né?

— Mas, então, o que aconteceu? O tradutor simplesmente traduziu errado por pura incompetência?

Não. Não foi pura incompetência. Isso foi causado pelo primeiro maior problema enfrentado pelo tradutor de softwarea falta de contexto.

Nas ferramentas usadas para traduzir software, as linhas de texto vão aparecendo para o tradutor isoladamente, fora das janelas ou menus onde elas existem no programa. O tradutor tem que traduzir sem informação de contexto:

Ambiente de trabalho típico de tradução de software. A coluna da esquerda mostra o original e o tradutor digita a tradução na coluna da direita, sem qualquer informação de contexto

No nosso exemplo, suponho que o tradutor tenha se deparado com estas linhas para traduzir:

Bem, sem qualquer informação de contexto, ele traduziu “In position” literalmente, “Na posição”, como se estivesse se referindo a um corredor pronto para dar a largada. Daí, seguindo essa linha de raciocínio, a linha seguinte deveria ser o oposto, portanto, mesmo dando uma entortada na gramática do inglês, ele traduziu “Out position” como “Fora da posição”:

Quero crer que o tradutor era um profissional consciente e que não tenha ficado satisfeito com isso, pois sabia que essas linhas de texto admitiam outras traduções. Mas, aí, imagino que ele tenha se deparado com o segundo maior problema enfrentado pelo tradutor de softwareo prazo de entrega extremamente curto. Se ele parasse o serviço para esclarecer dúvidas como essa com o cliente, iria estourar o prazo de entrega.

Ou, talvez, ele tenha se deparado com o terceiro maior problema enfrentado pelo tradutor de softwareum cliente que simplesmente não conhece o produto e, portanto, não pode esclarecer dúvidas.

Bem, o fato é que, ou para não perder o prazo, ou porque ninguém podia tirar dúvidas do tradutor, a tradução ficou mesmo assim.

O resultado foi um erro em uma informação básica e importantíssima. Provavelmente, centenas (ou milhares) de pessoas se confundiram nessa operação. Algumas delas devem ter conseguido se virar. Outras, não. Estas últimas podem até ter desistido de usar o software, trazendo ao cliente do tradutor o pior dos prejuízos: a perda de seu próprio cliente.

Outro caso típico de erro de tradução por falta de contexto ocorreu com as versões antigas do Photoshop (anteriores ao Creative Cloud). Na tela inicial, quando o programa era carregado na memória, via-se na tela uma informação como esta:

Liberar: 12.45

Isso também era resultado de tradução sem contexto. Ao traduzir esse software, o tradutor se deparou com esta palavra:

Consultando um dicionário vemos que “release” pode ser um verbo, significando liberar ou publicar, mas também pode ser um substantivo, com o sentido de “lançamento” ou “publicação”. Em pacotes de software, essa palavra é usada para representar o número da versão de um produto. Release 12.45 significa versão 12.45 do programa.

No entanto, o tradutor viu somente isto: “Release” , completamente sem contexto. Poderia ser um verbo ou um substantivo. O tradutor decidiu pelo verbo e traduziu como “Liberar”.

Daí para frente sempre que se iniciava o Photoshop, via-se algo assim :

Liberar: 12.45

Na verdade, ali deveria estar escrito “Versão 12.45”, mas a falta de contexto levou a esse erro.

O resultado de uma tradução errada por falta de contexto pode ser uma simples mensagem sem sentido, como “Liberar: 12.45”, mas pode também inviabilizar o uso do produto, como no exemplo inicial deste artigo.

O que se concluiu disso?

A conclusão é que, mesmo correndo o risco de incomodar o cliente, e mesmo que isso represente alguma alteração de cronograma, o tradutor não pode deixar passar traduções sobre as quais ele não tem certeza. Ele tem que solicitar ao cliente as informações de contexto: Onde aparece esta palavra? Para que serve este comando?

Faz parte do nosso trabalho mostrar ao cliente o melhor caminho na execução de um serviço, pois o cliente só tem o ponto de vista dele, de onde ele vê um prazo de entrega dentro de um cronograma de lançamento do produto. Nós temos que alertá-lo sobre problemas que ele desconhece, para evitar erros que só vão ser percebidos lá na frente, quando o produto já estiver lançado.

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