Saber fazer é necessário, mas não é suficiente
28 abr 2023A passagem de profissional individual a empresário é um passo maior do que parece.
Alguns anos após a revolução russa de 1917, que deu origem à União Soviética, uma grande fábrica de automóveis foi construída na cidade de Gorki.
O livro Soviet Communism: A New Civilization? (Comunismo Soviético: uma nova civilização?), escrito por Sidney e Beatrice Webb na década de 1930, nos conta o que aconteceu:
Depois de uma inauguração amplamente divulgada da fábrica, em 1 de maio de 1932, o empreendimento inteiro obstinadamente empacou! Os gigantescos edifícios, copiados das instalações da Ford em Detroit, estavam cheios de máquinas caríssimas. Dezenas de milhares de trabalhadores tinham sido recrutados e colocados na folha de pagamento. No entanto, a correia transportadora na qual os automóveis seriam montados, e de onde sairiam completos, um a cada cinco ou dez minutos, se recusava a andar. (…) A base sobre a qual ela se apoiava tinha cedido em vários locais devido a alicerces mal construídos. Os imponentes edifícios de concreto e vidro eram abertos às rajadas de vento que sopravam areia solta nas máquinas. E mesmo que se conseguisse fazer a correia andar, não havia nada parecido com um estoque completo das várias séries de componentes que tinham que ser corretamente fixados, um por um, à medida em que a correia passasse pelos operários. E sem a presença de todos esses componentes, durante o dia inteiro, nenhum carro poderia ser completado.
Mas, então, o que aconteceu? Os engenheiros soviéticos não sabiam fazer carros? Provavelmente sabiam. No entanto, o que eles certamente não sabiam era fazer fábricas de carros.
Fazer uma fábrica de carros é algo muito mais complexo do que fazer um carro: a primeira tarefa inclui inteiramente o processo de completar a segunda, e muito mais. E isso é verdade em qualquer área: tocar um restaurante é muito mais complicado do que ser um chefe de cozinha, tocar uma oficina de automóveis é muito mais complexo do que consertar carros, e assim por diante.
Eu tomei consciência desse raciocínio lógico quando migrei do papel de tradutor free-lance de inglês para português para o papel de dono de uma agência de traduções, na década de 1990.
Naquele momento, não conseguindo mais dar conta do volume de trabalho que estava recebendo, eu decidi começar a operar como uma empresa.
Primeiro passo: selecionar um grupo de tradutores.
Ora, isso me pareceu algo bastante simples. Seguindo o procedimento normal da época, publiquei anúncios em jornais procurando tradutores e informando meu e-mail para contato.
Já, de cara, aconteceu algo que eu não previa: para cada anúncio publicado, eu recebia centenas de mensagens de pessoas se apresentando como ótimos tradutores. Como escolher? Bem, fazendo um teste com cada um. Como nosso serviço na época era, basicamente, tradução técnica, enviei para cada candidato um teste para fazer em casa: a tradução de um pequeno texto técnico.
Dezenas de testes chegaram para cada anúncio. Depois de muitas horas avaliando testes muito parecidos entre si, eu chegava a um número grande de testes aprovados! Com isso, fui formando um grupo de potenciais colaboradores à espera de trabalho.
Um dia chegou uma tradução grande de inglês para português, vinda de uma agência de Dublin. Distribuí o serviço para um grupo dos novos aprovados, juntamente com instruções para manter a consistência e a qualidade. Cada um fez sua parte, reuni o pacote completo e entreguei ao cliente.
Uma empresa funcionando a todo vapor!
Passados alguns dias, veio o retorno do cliente: o serviço estava ruim e teve que ser refeito por um editor deles. As alterações estavam indicadas em um arquivo com marcas de revisão. O custo foi deduzido do pagamento.
Fiquei surpreso. Essa era para mim uma experiência nova: nunca alguém tinha reclamado de um trabalho meu!
Examinando as correções do editor do cliente, percebi que nosso trabalho tinha erros de tradução, o que mostrava que alguns profissionais selecionados não eram tão bons tradutores. Também notei que alguns tradutores simplesmente não seguiram as instruções, fazendo o trabalho do jeito que eles achavam melhor.
De repente, captei o conceito que citei acima para restaurantes e oficinas: para tocar uma agência de tradução é necessário, claro, que você ou alguém de sua equipe seja um excelente tradutor. No entanto, isso não é suficiente. Várias outras coisas também são necessárias, duas das quais eu estava descobrindo naquele momento:
- Saber escolher profissionais realmente competentes;
- Tomar medidas para assegurar a qualidade do trabalhos.
Eu tinha falhado nos dois pontos!
- Eu aprovara profissionais com base apenas em um teste simples de tradução, mas alguns deles não eram qualificados, ou por não serem realmente bons tradutores, ou porque não seguiam instruções.
- Eu não executei qualquer ação de controle de qualidade.
Naquele momento, há 30 anos, percebi que eu teria que adicionar uma etapa de controle de qualidade ao fluxo do trabalho.
Na década de 1990, o controle de qualidade na indústria de traduções era necessariamente executado por uma equipe de profissionais extremamente confiáveis que revisavam inteiramente o trabalho dos tradutores. Muito simples, exceto por um problema: eu precisaria ter profissionais confiáveis. De volta o primeiro problema!
Havia também um terceiro problema: com esse processo de seleção eu tinha que lidar diretamente com centenas de candidatos e revisar dezenas de testes, o que me tomava muito tempo.
Por isso, comecei a testar uma variedade de abordagens para resolver esses problemas. Finalmente, depois de anos de tentativas e erros, cheguei a um bom método viável:
- O endereço de email dado no anúncio gerava uma resposta automática, informando um endereço de internet de onde o candidato deveria baixar um teste.
- O endereço dado era fornecido como uma imagem tipo mapa de bits, o que exigia que o candidato abrisse um navegador de internet e digitasse ali o endereço.
- O pacote baixado continha o teste propriamente dito e um arquivo readme, com instruções detalhadas para executar o teste.
- O teste não era uma tradução técnica simples, mas algumas traduções de marketing de produtos de alta tecnologia, que é um dos trabalhos mais desafiadores na indústria de traduções.
Alguém pode questionar esse método:
— Para que fornecer o endereço na forma de uma imagem, apenas para obrigar o tradutor a digitá-lo?
Na verdade, era mais do que isso. Um problema era apresentado ao candidato já no início do processo: clicando no endereço nada acontecia, pois ele era uma imagem. O candidato tinha que ter a iniciativa de abrir um browser e literalmente digitar ali a linha de endereço sem erros. Se o candidato não conseguisse fazer isso, ou simplesmente não quisesse gastar tempo com isso, provavelmente também não estaria interessado em aprender novas ferramentas, resolver problemas inesperados ou simplesmente ser cuidadoso no trabalho real.
— Por que não dar as instruções no corpo da mensagem de email, em vez de fornecer um arquivo readme?
Em um trabalho normal, as instruções são normalmente dadas em um arquivo de instruções. Se o candidato não tem a iniciativa de ler o arquivo de instruções ao fazer o teste, muito provavelmente não vai fazer isso também em um trabalho normal.
Naquele ponto do processo, mesmo antes de iniciar o teste de tradução propriamente dito, o candidato já teria passado por etapas importantes do teste (sem mesmo ter consciência disso). Então, o passo seguinte era fazer uma tradução difícil e enviar o material traduzido seguindo instruções específicas de entrega.
O processo inteiro simulava um trabalho real de tradução.
Com essa nova abordagem, depois de ajustar os detalhes de um bom pacote de teste e postá-lo no servidor, tudo que eu tinha que fazer era publicar anúncios e esperar os testes chegarem no endereço de entrega. Em vez de receber dezenas de testes, eu recebia apenas alguns poucos, enviados por pessoas que já tinham solucionado um problema, tinham seguido instruções corretamente e tinham traduzido um texto difícil. No final, eu acabava aprovando um teste satisfatório dentro de muitos testes. Comparando o número de downloads do pacote de teste com as aprovações, a relação era algo como 1 aprovação para cada 100 candidatos interessados.
Uma vez aprovado um(a) candidato(a) nesse processo, ele(a) recebia apenas pequenos trabalhos, os quais eram cuidadosamente revisados. Se a qualidade fosse boa, a pessoa era considerada totalmente aprovada, tornando-se um membro regular da equipe.
Você pode aqui fazer uma objeção ao método: em vez de aprovar muitos profissionais, como eu fazia no início, eu acabava aprovando apenas um entre centenas de candidatos. A boa notícia é que eu aprovava AQUELE que tinha que ser aprovado. O resultado foi amplamente satisfatório. Tradutores e tradutoras selecionados por esse processo se mostraram excelentes profissionais. Mais tarde, quando começamos a trabalhar com espanhol, o mesmo processo foi repetido na Argentina e no Chile, resultando em uma equipe confiável e estável para espanhol também.
Um especialista em recursos humanos pode achar meu processo de seleção óbvio, ou até infantil, mas, para mim, ele foi extremamente importante: graças a ele foi possível eu administrar meu negócio. Na verdade, olhando para tudo que eu fiz em minha empresa ao longo de mais de 30 anos de atividade, considero que o desenvolvimento desse processo seletivo tenha sido minha maior conquista, pois me permitiu construir meu ativo mais valioso: uma equipe altamente qualificada.
Ao longo dos últimos anos, não precisei mais fazer seleções a partir de grupos grandes de candidatos, pois nossa equipe é muito estável. Assim, eu posso lidar com a seleção numa base individual, frequentemente partindo de indicações de nossos próprios profissionais. No entanto, se eu precisar novamente selecionar pessoas a partir de grandes grupos, tenho certeza de que esse método vai funcionar, com algumas adaptações para o cenário atual (em vez de publicar anúncios, teremos que fazer algum tipo de abordagem coletiva via LinkedIn ou alguma outra plataforma de software).
O fato é que, hoje, além de traduzir e escrever, sei selecionar pessoas que também sabem.
Foi um longo caminho.
Marcos Chiquetto is an engineer, Physics teacher, translator, and writer. He is the director of LatinLanguages, a Brazilian translation agency specialized in providing multilingual companies with translation into Portuguese and Spanish.