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O tradutor que não conseguia traduzir Tragédia e Comédia

Francisco Zaragoza Zaldívar 28 abr 2023

No conto A busca de Averróis, o escritor argentino Jorge Luís Borges trata daquilo que é um problema muito comum na tradução: como encontrar um equivalente cultural adequado no idioma de destino para uma palavra específica no idioma de origem.

Jorge Luis Borges, um dos maiores escritores no idioma espanhol

No conto de Borges, Averróis, um filósofo árabe do século 12 nascido em Córdoba (lembre que grande parte da Espanha estava então ocupada por árabes), famoso por suas traduções dos gregos, está traduzindo para o árabe a Poética de Aristóteles. Seu trabalho é interrompido por um problema difícil: as palavras tragédia e comédia, cujos significados Averróis desconhece, uma vez que não havia teatro no mundo islâmico. O filósofo consulta os trabalhos de referência que ele tem disponíveis, dizendo a si mesmo que “o que estamos buscando geralmente está muito perto de nós”, mas não consegue encontrar uma resposta satisfatória.

Estátua de Averróis em Córdoba, Espanha

Atraído por algo que parece uma melodia, ele olha para fora do terraço. Abaixo, três crianças, falando o dialeto espanhol ainda incipiente da Península Ibérica, estão imitando o ato de chamar os muçulmanos à oração; em outras palavras, estão imitando o azan. Uma das crianças finge ser o minarete, a torre da mesquita de onde os fiéis são chamados a orar. Outra, montada nos ombros do primeiro menino, finge ser o muezzin, o religioso que, da mesquita, chama os fiéis para a oração, ou salá. O terceiro menino, que está ajoelhado, finge ser o povo que está orando.

Fiéis islâmicos orando próximos aos minaretes da mesquita Hagia Sophia em Istambul, Turquia

O que Averróis está presenciando é representação, mimese, uma manifestação espontânea de teatro, isto é, o objeto ao qual se referem as palavras que ele está tentando entender. No entanto, mesmo a resposta a seu problema estando ali na sua frente, (ele já dissera a si mesmo — veja a ironia — que o que procuramos normalmente está muito próximo de nós), Averróis não se dá conta disso.

Um pouco mais tarde, Averróis tem outra oportunidade de vislumbrar o significado das palavras tragédia e comédia; ou seja, de entender o que é drama. Um amigo, voltando de uma viagem, relata sua experiência em um teatro, um lugar onde as pessoas “eram aprisionadas mas ninguém via a prisão; cavalgavam cavalos que não eram vistos; lutavam, mas com espadas feitas de bastões; e morriam para reviver em seguida.”

Teatro medieval: Forma popular de cultura europeia no tempo de Averróis, não existia no mundo islâmico.

Embora o espetáculo descrito pelo amigo de Averróis possa parecer óbvio para um ocidental (a maioria dos leitores que Borges tinha em mente), Averróis novamente não consegue entender o fenômeno do teatro, por estar tão ligado aos valores de seu próprio mundo.

Ele simplesmente não conseguia traduzir as palavras tragédia e comédia.

Tragédia e Comédia: palavras que Averróis não conseguia traduzir no conto de Borges

O fato é que traduzir é muito mais que apenas mudar de um código para outro, muito mais que substituir palavras de um idioma por palavras de outro. Traduzir é, acima de tudo, compreender.

E o que dizer de nós? Somos assim tão ligados aos valores de nossa cultura que fica impossível nos comunicarmos com uma cultura diferente? Somos assim tão incapazes de entender os outros? Nosso ambiente cultural seria um tipo de cerca, um compartimento?

Em seu conto, Borges responde “sim” a essas perguntas. Ele interrompe abruptamente sua história e nos diz que a busca de Averróis, isto é, os esforços de um árabe para entender um grego de quem está separado por quatorze séculos (Aristóteles), são tão inúteis quanto a própria tentativa de Borges de entender Averróis.

Ironicamente, se pensarmos na tradução da obra de Borges, tudo parece sugerir que houve muito mais tradutores seguindo o exemplo de Averróis do que tradutores desencorajados pelas conclusões solipsísticas do argentino. Afinal de contas, Borges, dentre os autores que escreveram em espanhol, é nada menos que o quinto escritor mais traduzido, logo abaixo de Miguel de Cervantes.

Borges na China

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