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Índio falar no infinitivo?

Marcos Chiquetto 3 maio 2023

Como a escolha feita por um tradutor deu origem a um estereótipo.

Estas duas imagens foram obtidas de blogs da internet:

Elas mostram uma ideia bastante difundida no Brasil de que indígenas usariam esse tipo de estrutura de frase: “Mim não seguir”, “Mim fazer” etc.

Até professores de português se apoiam nessa ideia para explicar o uso correto do pronome pessoal, como mostra esta frase retirada de um blog sobre gramática:

Morfologicamente, esses dois termos pertencem à família dos pronomes, sendo que o EU é um pronome pessoal do caso reto e o MIM é pessoal do caso oblíquo. E é por conta dessa divisão que os dois não podem ocupar mesmo lugar na frase. Logo, é para eu fazer e não para mim fazer… até porque mim não ser índio para falar assim…

Mas, será que os indígenas falariam mesmo assim?

Em primeiro lugar, todos nós usamos estruturas gramaticais erradas ao falar (veja nosso artigo sobre língua culta e coloquial), portanto, atribuir erros gramaticais a indígenas é uma atitude preconceituosa e racista. Mas, mesmo que a fala deles se desvie mais da norma culta que a nossa, será que eles cometem especificamente esse erro?

Certamente não. Essa ideia vem de outro lugar: ela vem do cinema e da televisão.

Até aproximadamente a década de 1960, os filmes norte-americanos que abordavam a conquista do território dos Estados Unidos pelos colonos brancos retratavam os povos nativos da América do Norte de uma forma preconceituosa e racista. No retrato caricato daqueles filmes, estes usariam o pronome “me” em vez de “I” e não seriam capazes de flexionar os verbos para o passado e o futuro, e nem para a terceira pessoa. Por exemplo, em vez de dizer “I like you” eles diriam “Me like you”. Em vez de “She cries”, diriam “she cry”. Em vez de “I went there”, diriam “Me go there”.

Suponho que esse retrato caricato tenha alguma base na realidade, já que o inglês não era a primeira língua desses povos. Provavelmente os indígenas de lá faziam erros desse tipo e isso foi aproveitado nos filmes pra reforçar o retrato racista desses povos.

Vamos ver isso em um seriado da TV dos anos 50. Clique aqui para ver o vídeo.  (No final, feche a janela do vídeo para voltar a este texto).

Nesse seriado, Tonto é o nome do nativo que era auxiliar do cavaleiro solitário mascarado. No final do trecho , ele diz “Me do”. Como você pode ver, o tradutor que escreveu as legendas do filme traduziu “Me do” como “Farei isso”. Segundo o roteirista do filme, portanto, em vez de dizer “I will do”, o nativo diria “Me do”.

Esse tradutor não se preocupou em manter o uso incorreto do idioma na tradução. Ele simplesmente escreveu o que seria o certo: “Farei isso”. Mas quando os filmes eram dublados, os tradutores provavelmente queriam manter essa característica da fala, para não perder uma informação importante: a forma grotesca e ridículo do nativo falar. Afinal, o tradutor tem que ser o mais fiel possível à mensagem original.

Veja como esse problema foi resolvido pelo tradutor em trecho do mesmo seriado, agora dublado. Clique aqui para ver.

Para ver novamente, clique no ícone “Reiniciar” na parte de baixo da janela.

A frase “Mim vai atrás homem atira” foi a solução dada pelo tradutor para uma frase original que seria algo como “Me go after man shoot”. Dita por um branco com cultura formal, essa frase seria algo como “I will go after the man who shot him” (é claro que um colono branco do século XVIII nos Estados Unidos não teria toda essa cultura formal, mas os roteiristas de filmes não se atentavam a esses detalhes irrelevantes). Meu colega tradutor se viu frente a uma escolha difícil: eliminar da mensagem a carga depreciativa, usando frases corretas em português, ou manter a ideia original, criando em português algo parecido com o que estava lá. Ele optou pela segunda alternativa.

Assim, frente a uma necessidade profissional, os tradutores brasileiros criaram esse padrão para a fala dos nativos norte-americanos nos filmes. Não devemos criticar os tradutores por terem feito isso. Eles tinham que optar entre duas soluções ruins:

  1. Ignorar o tom depreciativo das falas no original e escrever frases corretas em português, como fez o tradutor que legendou o primeiro exemplo
  2. Manter o tom depreciativo, ou seja, procurar ser fiel ao original, criando alguma forma em português que se aproximasse do original e que fosse também depreciativa, como fez o tradutor do segundo exemplo.

Em geral, os tradutores optaram pela segunda abordagem, o que foi uma opção válida. É bom ressaltar que essa opção também demarca uma posição racista, que hoje seria justamente questionada. No entanto, a ideia de que o racismo se manifesta em vários níveis, inclusive na linguagem, ainda não estava bem estabelecida naquele momento, e os tradutores tomaram esse caminho provavelmente por não verem melhores opções.

Bem, e o que isso tem a ver com a forma como hoje nos referimos a indígenas falando?

Dependendo da região do país, muitas pessoas podem não ter tido a oportunidade de conversar com indígenas. Portanto, a única referência que tinham sobre eles eram os filmes norte-americanos, que inundaram os cinemas do mundo no pós-guerra (década de 1950). Foi ali que os brasileiros formaram essa ideia de que indígenas falam usando o pronome “mim” seguido de um verbo no infinitivo. Isso pode ser visto em uma música da Xuxa, da década de 70. Clique aqui para ouvir.

Aí você ouve as frases:

“Índio fazer barulho; Índio ter seu orgulho”

Seria difícil imaginar alguém falando frases tão estranhas. Principalmente porque no português a forma infinitiva do verbo (fazer, ter) é menos usada do que a forma indicativa (eu faço, eu tenho, ele faz, ele tem). No entanto, ouvimos isso com naturalidade, como se indígenas realmente falassem assim.

Conclusão: uma decisão técnica de alguns tradutores décadas atrás, que possibilitou que eles traduzissem com algum padrão um material importado cheio de preconceito e racismo, deu origem a um estereótipo de fala indígena em português, totalmente falso, que se tornou senso comum.

Esse fato nos leva a uma reflexão: é sempre bom pensar sobre a origem dos padrões linguísticos com os quais convivemos, porque eles podem conter uma forte carga cultural, que reflete as contradições da nossa sociedade.


Uma notinha final: Tenho que fazer uma crítica ao colega tradutor de 60 anos atrás. No primeiro trecho de filme citado acima, o cavaleiro solitário diz “Bring the canteen” para que seu assistente índio traga o cantil de água. No entanto, meu colega lascou a legenda “Traga a cantina”. Só fica a dúvida sobre onde o pobre índio poderia encontrar uma cantina em pleno oeste norte-americano no século XVIII, e como ele faria para trazê-la.

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