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Ascensão (e queda) das palavras

Marcos Chiquetto 28 abr 2023

— Ontem vim de Sampa. Estava chovendo lá.

Se você ouvir essa frase, certamente vai entendê-la. No entanto, se alguém dissesse isso em 1960, ninguém entenderia. Isso, porque “Sampa”, significando “São Paulo”, é uma palavra nova na língua portuguesa.

E de onde ela vem? Como ela se instalou na nossa língua?

Provavelmente você sabe que ela foi lançada no país inteiro através de uma música de Caetano Veloso nos idos de 1970.

“Alguma coisa acontece no meu coração, que só quando cruzo a Ipiranga e a Avenida São João” (Sampa — Caetano Veloso)

E se alguém disser isto:

— Minha sobrinha? Depois que casou virou uma amélia.

Todos vão entender que a garota faz tudo para o marido em detrimento de si mesma.

Essa palavra, com esse sentido, também veio de uma música: o samba “Ai! que saudade da Amélia”, lançado em 1942, composto por Ataulfo Alves e Mário Lago.

Ataulfo Alves e Mário Lago, compositores de “Ai! que saudades da Amélia”, canção que acabou criando um significado novo para a palavra “Amélia”.

A música foi um grande sucesso, sendo regravada por dezenas de artistas. Hoje, é até incompreensível que essa música tenha sido publicada, quanto mais que tenha sido um sucesso, pois ela seria considerada ofensiva às mulheres. No entanto, há 70 anos ela foi recebida com naturalidade. Se você não a conhece, pode ouvi-la na voz de Ataulfo Alves clicando aqui. (No final, feche a janela do vídeo para voltar a este texto.)

Hoje, você encontra a palavra “amélia” até no dicionário:

amélia
Substantivo feminino.
1.Bras. Pop. Mulher que aceita toda sorte de privações e/ou vexames sem reclamar, por amor a seu homem.

Esses exemplos mostram que palavras novas podem se instalar na língua, ou palavras antigas podem adquirir novos significados, quando aparecem em letras de música ou poesias que se tornam muito populares, passando daí a serem usadas universalmente pelos falantes da língua.

Mas a trajetória das palavras não para aí. Palavras novas podem também rapidamente se desgastarem por excesso de uso e se transformarem em chavões.

Por exemplo, até algumas décadas atrás, havia o setor denominado geral nos estádios de futebol, com ingressos mais baratos, e que ficavam lotados nos clássicos.

Antes das recentes reformas do Maracanã, o setor mais popular era a geral, onde o público assistia o jogo em pé. Essa foto mostra a geral num domingo de clássico.

No Maracanã, o público da geral era pejorativamente chamado de “galera”, talvez por estarem num local apinhado de gente e se agitando em conjunto, como os remadores (galés) nos navios antigos.

Galeras eram navios que utilizavam remadores movendo-se em conjunto. Talvez por analogia com os remadores das galeras, o público da geral do Maracanã era chamado de “galera”.

Essa palavra, que era uma gíria carioca, foi lançada nacionalmente no Festival Internacional da Canção de 1972 por Jorge Ben (hoje, Jorge Benjor) na genial música “Fio Maravilha”, interpretada por Maia Alcina. Ouça a música clicando aqui. (No final, feche a janela do vídeo para voltar a este texto.)

A partir desse evento, a palavra passou a ser cada vez mais utilizada fora do Rio de Janeiro, acabando por ser adotada nacionalmente, para se referir a um coletivo de pessoas.

De lá para cá, a palavra “galera” tem sido usada de forma massacrante nos meios de comunicação, sendo, por exemplo, pronunciada dezenas de vezes numa só tarde de domingo num programa de auditório. Clique aqui para ver um exemplo. (No final, feche a janela do vídeo para voltar a este texto.)

Hoje, a palavra perdeu sua força original, sendo usada na maioria das vezes para preencher o discurso com um vocativo vazio.

Com a velocidade vertiginosa das comunicações hoje, também a ascensão e queda das palavras pode ser um processo muito rápido.

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