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As conversas em Dark (publicado em agosto de 2020)

Marcos Chiquetto 4 maio 2023

A série Dark, que hoje é um sucesso estrondoso de público no Netflix, mostra viajantes que viajam para o futuro e para o passado atravessando um túnel misterioso. Para cada época, a série mostra com bastante rigor os produtos da tecnologia disponíveis, assim como as roupas e os hábitos das pessoas. No entanto, todos os personagens conversam entre si com total naturalidade. Um alemão de 2019 conversa com um alemão de 1888 com a mesma naturalidade com a qual conversamos no boteco da esquina (ou num grupo de whatsapp, em tempos de pandemia).

Mas será que conversariam mesmo assim tão naturalmente?

Bem, essa é uma questão que somente um estudioso de etimologia poderia responder com segurança. Eu tenho um palpite: acho que não conversariam com a naturalidade mostrada na série. Na medida em que os objetos e os hábitos evoluem, a linguagem evolui junto

Pensemos num exemplo. Alguém de 1970 viaja no tempo até 2020 e cai no meio de um grupo de adolescentes. Daí, alguém do grupo diz:

“Meu primo baixou no celular um app que faz streaming de torrent.”

Todos os adolescentes do grupo entenderiam a frase, que soaria perfeitamente natural. Já, nosso viajante do tempo estaria se deparando com um discurso enigmático, algo como uma conversa entre alquimistas vista por um camponês medieval. Para não dizer que a frase seria totalmente incompreensível, ele certamente entenderia esta parte: “Meu primo”. Todo o restante usa verbos e substantivos que descrevem ações ou objetos que não existiam em 1970, sendo, portanto, incompreensíveis para alguém daquela época.

Veja as palavras usadas:

baixar: com o sentido de transferir um arquivo de um servidor para sua máquina, é tradução do inglês “download”, cujo primeiro registro é de 1977 (segundo o Online Etimology Dictionary);

celular: com o sentido de um aparelho de comunicação, tem seu primeiro registro de uso também em 1977 (idem);

app: abreviação de “Application”, cujo primeiro registro com o sentido de um programa de computador é de 1992 (idem);

streaming: com o sentido de reproduzir um vídeo na tela de um computador ou celular no momento em que ele é baixado, é um palavra muito recente, pois é uma ação que só passou a existir quando a internet se tornou suficientemente rápida para isso, há poucos anos;

torrent: com o sentido de mover arquivos piratas entre duas máquinas, pela internet, também é uma palavra recente, já que a internet se tornou pública somente na década de 1990.

É claro que eu imaginei uma situação onde essa diferença de linguagem foi propositalmente maximizada. Primeiro, ao escolher o salto temporal de 1970 a 2020, já que o desenvolvimento da tecnologia nesse período seguiu um ritmo inédito na história do mundo. Depois, ao escolher um grupo de adolescentes, que são a faixa etária onde a renovação da linguagem é mais evidente. Por último, ao imaginá-los conversando sobre objetos relacionados à tecnologia recente.

No entanto, em um grau menor do que no exemplo acima, a linguagem muda continuamente. Talvez isso não seja muito perceptível num intervalo de tempo curto, mas frases ditas por um personagem de 2019 certamente conteriam ideias estranhas ao personagem de 1888, representadas por palavras incompreensíveis para este, o mesmo acontecendo no sentido inverso, embora com intensidade muito menor.

Mas, e daí? A série ficaria melhor se os roteiristas tivessem levado em conta esse problema? Sei lá. A história, do jeito que é, já é suficientemente confusa. Se, além de tudo que acontece ali, os personagens ainda por cima não se entendessem, acho que nós, pobres espectadores, entraríamos em parafuso. Melhor deixar como está.

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