Alguém vai ler suas cartas daqui a 3500 anos?
4 maio 2023Na caverna de Lascaux, na França, há belíssimas pinturas rupestres (isto é, pinturas em pedra) representando animais. Os arqueólogos atribuem a essas pinturas uma idade entre 15.000 e 17.000 anos.
Supondo que uma geração humana tenha duração média aproximada de 20 anos, essas pinturas foram feitas há mais de 750 gerações. Imagine uma linhagem de 750 famílias sucessivas ao longo do tempo, e as pinturas lá, preservadas.
Em 2010, arqueólogos israelenses acharam um fragmento de escrita cuneiforme, o mais antigo já descoberto, com 3.700 anos de idade.
Você já pensou nisso? Há 3500 anos, ou seja, há aproximadamente 170 gerações, alguém criou um documento em escrita cuneiforme numa base de barro e essa escrita sobreviveu até hoje! Simplesmente ela ficou lá, quietinha, até ser descoberta milhares de anos depois.
Outro tipo de registro criado há muitíssimo tempo é a escrita em papiros, feita com tinta, muito usados no Egito antigo. Há papiros ainda legíveis que foram escritos há mais de 3 mil anos.
Mais recentemente, na Idade Média, período que vai de aproximadamente 1500 anos atrás até 700 anos atrás, monges católicos escreveram textos sofisticados com ilustrações belíssimas sobre pergaminhos, um tipo de material à base de couro. Muitos desses pergaminhos medievais sobreviveram até hoje. Um pergaminho escrito há 1000 anos foi escrito há 50 gerações. E ele pode estar ainda legível!
Já os textos impressos em papel surgiram na Europa no século XV, ou seja, há aproximadamente 600 anos, ou 30 gerações.
E depois da impressão em papel, qual foi a tecnologia seguinte usada para registrar documentos?
São os arquivos eletrônicos de texto ou imagem, que podem ser armazenados em mídia óptica do tipo CD.
E qual é a vida útil de um CD gravado? Bem, de acordo com os fabricantes, a vida útil dos CDS mais simples depois de gravados é de 50 anos, e vida útil dos CDs de melhor qualidade é de 200 anos. Ninguém ainda testou isso na prática pois é impossível apressar o tempo em laboratório, mas existem modelos matemáticos bastante robustos para simular longas durações, portanto essa vida útil é uma estimativa confiável. Tomando esse dado como verdadeiro, daqui a 50 anos a maioria dos CDs que temos hoje gravados terão seus conteúdos perdidos.
Compare a vida útil das várias mídias aqui citadas:
Mas quase não se usa mais CD. Muitos textos ficam simplesmente gravados nos discos rígidos ou unidades SSD dos notebooks. Esses aparelhos têm vida útil abaixo de 10 anos, ou seja, um artigo científico que ficou gravado somente em um notebook provavelmente estará perdido daqui a 10 anos.
− Mas hoje não se grava somente nos notebooks. Os arquivos são armazenados em nuvem e por isso ficam seguros.
Sim. Isso é verdade.
Mas, o que é uma nuvem?
Para nós, usuários, é um local misterioso onde nossos arquivos ficam guardados de uma forma que não entendemos muito bem. Mas, na prática, o hardware da nuvem nada mais é que um grande sistema de computadores servidores, que fica ligado 24 horas por dia, e que armazena os arquivos dos usuários.
Esses servidores são máquinas extremamente complexas, que dependem do constante fornecimento de energia para se manterem ligadas, de um gigantesco sistema de refrigeração para se manterem operacionais, e de um sistema global de comunicações para receberem e fornecerem informações. Se qualquer um desses sistemas de apoio não está dentro da especificação, os servidores simplesmente não funcionam.
Além disso, um servidor também tem vida útil curta, de aproximadamente 10 anos, e a própria tecnologia dos servidores muda num período entre 10 e 20 anos. Isso significa que todo o conteúdo tem que ser migrado de uma máquina para outra pelo menos uma vez a cada 20 anos.
Você já pensou nisso? Hoje, a quase totalidade do conhecimento científico, o conteúdo de jornalismo, os currículos escolares, as mensagens trocadas entre pessoas, os contratos, as músicas, e quase todas as outras modalidades do conhecimento e das artes estão armazenadas em máquinas extremamente delicadas e complexas, que duram 20 anos no máximo. Ou seja, no máximo a cada geração humana, toda essa massa de informações terá que ser cuidadosamente migrada entre servidores sucessivos.
Além disso, esse conteúdo fica armazenado em discos magnéticos, que podem ser afetados por variações intensas de campo magnético. Uma tempestade solar muito intensa, como a que ocorreu em 1859, pode danificar o conteúdo de discos magnéticos.
E um documento poderá durar 3500 anos, como a escrita cuneiforme citada neste artigo? O único jeito será ele ser migrado no mínimo 170 vezes de um servidor para outro, sem um erro. E sem que nenhum dos 170 servidores sucessivos seja afetado por alguma tempestade solar ou por algum bombardeio.
É claro que todo o conteúdo da nuvem fica armazenado com cópias de backup, mas tudo que foi dito aqui vale também para as máquinas de backup.
O fato é que, diferentemente das escritas tradicionais, os documentos não ficarão preservados passivamente com a tecnologia atual. Não basta deixar o arquivo de computador lá quietinho, e ele vai se preservar. É preciso uma intervenção constante, complexa e cara para que os documentos se preservem.
Acho isso altamente perturbador!
Marcos Chiquetto is an engineer, Physics teacher, translator, and writer. He is the director of LatinLanguages, a Brazilian translation agency specialized in providing multilingual companies with translation into Portuguese and Spanish.