A humanidade está piorando com os computadores?
4 maio 2023Pense em Beethoven e sua obra mais complexa: a Nona Sinfonia. Ali, além da orquestra sinfônica completa, há um coral com dezenas de vozes masculinas e femininas, além dos cantores e cantoras solistas. Quando compôs essa obra, Beethoven já era surdo. Não podia ouvir qualquer nota musical. No entanto, escreveu as partituras para dezenas de instrumentos e vozes humanas executarem a música simultaneamente.
Como foi possível compor uma música tão complexa sem ouvir? Quando um compositor imagina uma linha melódica, a primeira ação que lhe ocorre é tocá-la num piano, para sentir o resultado. Mas Beethoven não podia fazer isso. Ele simplesmente tinha tudo na cabeça. Sua capacidade de concentração e sua musicalidade eram tão poderosas que ele conseguia “ouvir” mentalmente tudo que estava compondo e escrever o resultado em papel com segurança. A primeira vez que tudo aquilo realmente se tornou som foi quando as partituras chegaram à orquestra para os ensaios.
Pense agora em um escritor como Gabriel Garcia Marques e sua monumental obra, “Cem Anos de Solidão”. Esse livro foi inteiramente datilografado por ele, e se você examinar uma página do original (disponível no Google), vai ver que há poucas correções no texto, ou seja, quando ele escrevia uma frase, esta já vinha pronta da sua cabeça.
O mesmo se pode dizer dos jornalistas e cronistas que escreviam suas matérias em máquinas de escrever. Eles não podiam se dar o luxo de errar muito, pois a correção era trabalhosa (era preciso apagar e reescrever o trecho no papel). A frase tinha que vir da cabeça já pronta.
Hoje, muitos compositores trabalham diretamente em um teclado ligado a um computador. Quando um trecho de música lhes vem à cabeça, tocam o trecho no teclado e armazenam na memória do computador, para então ouvir e, partindo da escuta, ir modificando até chegar na música definitiva. Depois compõem uma linha de baixo, por exemplo, armazenam na memória, e tocam junto para ver como ficou. E uma composição complexa pode ser construída dessa forma, adicionando uma parte por vez e ouvindo o resultado.
E eu? Estou aqui escrevendo este texto num computador e não fico formulando ideias completas na cabeça. Simplesmente vou escrevendo e vendo como fica, para então mudar algumas frases de posição, reescrever e apagar outras, até chegar um texto satisfatório. O computador se tornou parte do meu cérebro. Eu dependo dele para formular o texto. E se eu tiver que escrever isto numa máquina de escrever? Vou conseguir? Sei lá. Não sei se hoje eu conseguiria formular na cabeça frases completas e prontas. Acho que seria difícil.
Qual é a conclusão que se tira disso? Que as pessoas eram mais competentes antigamente? Que a espécie humana piorou com a chegada dos computadores? Não. O que acontece é que o ser humano tem uma enorme capacidade de adaptação às circunstâncias em que se encontra. Um músico ou escritor de antigamente simplesmente não tinha como armazenar provisoriamente seu trabalho, para então contemplar o que tinha feito e modificar. Ele era obrigado a imaginar as coisas já prontas para então escrevê-las. Então tinha que aperfeiçoar ao máximo essa capacidade. Hoje, não precisamos mais disso, então essa potencialidade fica inibida em nossa mente. Se houver uma pane energética mundial e os computadores pararem de funcionar, a humanidade (ou a parte da humanidade que sobreviver) certamente vai desenvolver novamente esses recursos mentais.
Enquanto isso, vamos aproveitando a facilidade que o computador oferece.
Marcos Chiquetto is an engineer, Physics teacher, translator, and writer. He is the director of LatinLanguages, a Brazilian translation agency specialized in providing multilingual companies with translation into Portuguese and Spanish.