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A capacidade de mentir impulsionou a evolução da espécie humana?

Marcos Chiquetto 4 maio 2023

Acabo de ler o livro “The Dawn of Language” de Sverker Johansson. Em tradução livre, o título da obra é “A alvorada da linguagem”. Trata-se de um apanhado geral do estado atual dos estudos sobre o surgimento das linguagens humanas.

Nessa obra, o autor explica que, para desenvolver qualquer trabalho de pesquisa nesse campo, é preciso responder a uma indagação fundamental: o que é uma linguagem?

Essa parece ser uma pergunta de resposta simples, mas, se você parar para pensar, vai ver que ela não é tão simples assim.

A seguir vemos alguns casos que mostram a complexidade dessa indagação:

  • Quando uma pessoa boceja, ela está emitindo uma mensagem, recebida pelas pessoas próximas. Essas mensagens formariam uma linguagem? Haveria a “linguagem dos bocejos”?
  • E quando crianças choram? Isso seria alguma linguagem? Haveria a “linguagem dos choros infantis”?
  • E os papagaios falando? Podemos considerar isso uma linguagem?
Bocejos, choros de crianças e papagaios falando. Linguagens?

Evidentemente, cada um pode estabelecer seus próprios critérios, incluindo ou não bocejos, choros e papagaios na categoria das linguagens. O problema é que, se várias pessoas fizerem pesquisas científicas sobre linguagens, é recomendável que todas usem os mesmos critérios para definir o objeto de estudo, para que seus resultados possam ser comparados.

Johansson relata em seu livro que o linguista Charles Hockett, na década de 1960, propôs uma lista de 13 critérios para decidir se um determinado conjunto de mensagens é uma linguagem humana. Segundo Hockett, um conjunto de mensagens é uma linguagem se:

  1. A comunicação ocorre por meio de voz e audição.
  2. A transmissão é não direcionada (qualquer um nas proximidades pode ouvir) mas a recepção é direcionada (o ouvinte pode sempre identificar quem está falando).
  3. O signo (no caso, a fala) desaparece imediatamente após ser emitido.
  4. Qualquer coisa que pode ser ouvida pode ser também falada por quem ouviu.
  5. Quem fala sempre pode ouvir suas próprias mensagens.
  6. A comunicação é sempre intencional.
  7. Cada signo se vincula especificamente a um significado particular.
  8. Os signos são arbitrários, isto é, não há uma regra para a atribuição de significado aos signos.
  9. O conjunto de mensagens é construído a partir de elementos menores, que funcionam como tijolos. Por exemplo, fonemas formando palavras e palavras formando sentenças.
  10. A comunicação pode se referir a coisas que não estão presentes no momento da comunicação (só assim é possível contar uma história).
  11. Linguagens podem ser aprendidas e passadas para frente dentro de um grupo social. Crianças podem aprender uma linguagem com os adultos.
  12. Nem sempre se pode confiar em uma mensagem. Usando linguagem é possível mentir.
  13. Uma linguagem pode ser usada para se comunicar sobre a própria linguagem.

Atualmente há muitas críticas a esses critérios. Eles não incluiriam, por exemplo, a linguagem de sinais dos surdos, que não se encaixaria no critério número 1. Hoje, portanto, essa lista, criada na década de 1960, certamente teria que ser revista. Mas ela teve um papel importante no desenvolvimento das pesquisas sobre linguagens.

Vamos responder às perguntas que fizemos no início do artigo usando esses critérios:

  • Bocejos claramente não atendem ao critério número 6, pois quem boceja não o faz intencionalmente. Não há, portanto, uma “linguagem dos bocejos”.
  • Choros de crianças certamente não passam no critério 4, pois uma mãe não consegue chorar como seu filho, apesar de receber a mensagem do choro. Assim, choros de crianças não seriam considerados como linguagens. Não há uma “linguagem dos choros”.
  • Papagaios adultos não ensinam papagaios crianças a falar, portanto, falas de papagaios não atendem ao critério 11, não formando, portanto, uma linguagem.

Achei esses critérios muito interessante. Eles refletem a necessidade de aquele pesquisador, naquele momento, delimitar seu campo de pesquisa. Os critérios certamente foram criados para eliminar tipos de comunicação que ele não iria estudar, como foi o caso dos três exemplos acima.

Mas o que mais me intrigou nessa lista foi o critério 12. Um conjunto de mensagens só pode ser considerado uma linguagem, segundo Hockett, se ele permitir a emissão de comunicações não confiáveis, ou seja, se for possível mentir usando essas mensagens. Não consigo imaginar quais mensagens ele estava querendo excluir de sua classificação quando estabeleceu esse critério, mas, certamente, todas as linguagens humanas que eu conheço se encaixam nele. Pode-se mentir em qualquer língua.

Em qualquer língua, é sempre possível mentir.

Johansson apresenta, então, uma tese fascinante: ao desenvolver as linguagens, os seres humanos tiveram que aprofundar seus laços afetivos e as iniciativas de colaboração com outros humanos, já que nunca poderiam confiar totalmente no que os outros estivessem falando, pois todos podem mentir se quiserem. E essa colaboração e esses laços afetivos foram fatores determinantes para a evolução da nossa espécie.

Com a colaboração e os laços afetivos, você pode supor, com razoável segurança, que o outro vai lhe falar a verdade.

Taí algo muito complexo, sobre o qual vale a pena uma reflexão profunda!

Referência: Johansson, Sverker. The Dawn of Language: The story of how we came to talk. Quercus. Edição do Kindle.

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