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Interpretação simultânea durante a quarentena (publicado em março de 2021)

Renata Hetmanek 28 abr 2023

A última vez que trabalhei como intérprete em um evento presencial foi em março de 2020. Foi em uma conferência organizada por uma multinacional que atua no segmento de cartões de crédito, com dezenas de mesas cuidadosamente decoradas com arranjos de flores naturais e sobre elas um pequeno frasco de álcool gel oferecido como brinde a cada participante. Pensei cá com os meus botões: deve ter algo muito errado acontecendo. Já vi todo tipo de brinde para os participantes, como pen drives, chocolates, doces, sacolas personalizadas, mas álcool gel?

Março de 2020: álcool gel de presente para cada participante. Pensei com meus botões: algo está errado aqui!

E aí todos sabem o que veio depois.

Todos os eventos foram cancelados.

No início, os clientes adiaram todos os eventos para julho, agosto e setembro. Depois, os eventos acabaram sendo cancelados mesmo. Como geralmente sou uma pessoa otimista, fiquei quieta no meu cantinho e continuei fazendo as traduções escritas. Todo mundo começou a falar sobre interpretação simultânea remota, que não é novidade, mas não era algo comum naquela época. Continua sendo interpretação simultânea, mas não exatamente como os intérpretes estavam acostumados a fazer antes da quarentena. Pelo menos não a maioria de nós.

Na época em que o mundo era livre para irmos e virmos quando bem quiséssemos — quer dizer, antes do apocalipse — um dia normal na vida do intérprete consistia em acordar bem cedinho, atravessar a cidade inteira (já que em geral os eventos são longe de casa), encontrar um lugar decente para estacionar o carro (geralmente com valor equivalente ao do almoço), chegar ao local do evento, entrar na cabine de interpretação, testar os equipamentos com técnicos qualificados, trocar ideias com os apresentadores e com os organizadores do evento, cuidar para que ninguém ficasse em pé bem na frente da cabine, para que pudéssemos observar a linguagem corporal do apresentador e fazer leitura labial sempre que necessário e, por fim, mas não menos importante, traduzir o que precisasse ser traduzido. Se acontecesse algum problema técnico, como um apresentador com o microfone desligado, ou ruídos indesejados na sala, podíamos sempre contar com técnicos de som experientes que rapidamente resolviam a questão.

Intérpretes trabalhando antes do apocalipse

Assim que começou a quarentena no Brasil, em março do ano passado, as agências de interpretação e os clientes de diferentes setores começaram a demandar a chamada “interpretação simultânea remota” (RSI). Isto é, interpretação feita no home office do intérprete (na maioria dos casos) ou em um pequeno estúdio, ou em um hub. A palavra “remota” aqui se opõe a “presencial”. Porque, hoje em dia, quase nada acontece de forma “presencial”. A ideia é manter o distanciamento social.

Então, qual é a diferença agora? Em primeiro lugar, não existe uma equipe para dar suporte ao intérprete de modo “presencial”. Porque nada acontece de forma “presencial”. É tudo remoto. Todas as pessoas se conectam através de uma plataforma de software, através de uma solução de videoconferência. E isso é assustador, pode acreditar.

Minha primeira estratégia de autodefesa foi me fingir de morta. Antes da pandemia de COVID-19, eu me recusava a fazer intepretação simultânea remota, alegando que as únicas duas coisas que eu sabia fazer simultaneamente era ouvir e falar ao mesmo tempo em idiomas diferentes. Sem essa de preocupações técnicas, por favor. Mas, aí, avançando rápido nesse filme para quatro meses depois, o noticiário continuava com as manchetes sobre os casos e estatísticas da pandemia. Foi aí que decidi que já estava na hora de aceitar a mudança e voltar ao campo de batalha.

A nova cabine

Meu escritório em casa era perfeito para as traduções escritas. Porém, ele teve que ser adaptado para a interpretação simultânea remota. Sondei alguns colegas e descobri que eu precisaria de um headset com cancelamento de ruído, para diminuir os ruídos em volta da casa, como carros passando na rua, cachorros latindo na vizinhança, cortadores de grama e coisas do gênero. Resolvido.

Eu também precisaria instalar os programas mais usados de videoconferência no meu PC e no meu notebook, porque eles funcionam melhor assim do que quando a pessoa só clica no link para abrir a reunião. Resolvido.

Eu precisaria de um microfone e de uma placa de áudio para conectar ao meu smartphone, caso o cliente pedisse para eu usar um canal diferente para traduzir a videoconferência. Resolvido.

Além disso, eu precisaria de um segundo provedor de internet, caso a minha conexão principal não funcionasse. Resolvido.

Também achei que seria uma boa ideia colocar um pedaço de espuma por dentro do sino que tenho na porta de casa, para silenciar possíveis visitantes (nos dias de hoje, em sua maioria entregadores de produtos), e colar avisos educados na porta e na janela dizendo “Silêncio, por favor” para alertar os vizinhos que eu não poderia nem dizer “oi” durante o trabalho, nem por um segundo. Resolvido. Resolvido.

A nova cabine

Ah, eu não tenho relógio cuco em casa, mas sei de alguns intérpretes que tiveram que cuidar disso também. E os que têm filhos pequenos tiveram que mandar as crianças para outro lugar, por razões óbvias.

Muito bem, com tudo isso resolvido, estava na hora de trabalhar. A maioria dos clientes prefere fazer um teste técnico rápido de meia hora, uns dois dias antes do evento, para garantir que todas as pessoas envolvidas estejam com o link certo para a reunião e que todos os equipamentos estejam funcionando direitinho. Agora, mais do que antes, é importante que os clientes forneçam material de apoio para que os intérpretes possam ler e fazer pesquisa com antecedência.

A conexão geralmente é feita meia hora antes do evento. Alguns programas de videoconferência possuem um recurso especial voltado para intérpretes, de modo que os participantes podem ouvir a tradução em um canal diferente. Para trabalhar em dupla, que é a prática mais comum entre os intérpretes, fazemos uma ligação telefônica separada (usando o smartphone) e, com um fone simples no ouvido, conseguimos ouvir um ao outro durante a tradução. (É, é mais uma voz para ouvir durante o trabalho, mas só ponho esse outro fone no ouvido quando não sou eu quem está traduzindo). Podemos nos comunicar digitando texto pelo WhatsApp Web (prefiro usar o notebook para isso), e é assim que vamos controlando o tempo e nos preparamos para o revezamento (quando ocorre a troca com o outro intérprete).

Se a conexão de internet do intérprete cair, o segundo intérprete pode começar a traduzir imediatamente, até que o primeiro intérprete (assim se espera) volte à ação.

Sim, existem clientes que preferem trabalhar com apenas um intérprete, para economizar dinheiro. Eu entendo o raciocínio econômico. Contudo, se cair a internet na hora do evento, ou se acabar a energia elétrica durante uma tempestade (e todos sabemos que isso poderia acontecer), o evento ficará sem tradução. Sendo assim, recomendo enfaticamente a contratação de dois intérpretes para cada par de idiomas. Posso garantir que não fica mais caro do que ficaria com a contratação de uma equipe normal, que inclui intérpretes, técnico de som, aparelhos transmissores e receptores individuais, recepcionista para distribuir os receptores, cabine de interpretação, alto-falantes, microfones, baterias de reserva, aluguel da sala de conferência, contratação de coffee break etc.

A interpretação simultânea remota é melhor do que a interpretação presencial tradicional? Na minha opinião, não é. Muita coisa pode dar errado. A vantagem é não ter que se deslocar para longe até o local do evento. Mas sou um ser social, como a maioria dos intérpretes, e sinto falta de toda a movimentação presente em conferências e congressos. Sinto falta de conversar com as pessoas, observar como se comportam, como se vestem, como se cumprimentam. Sinto falta das informações obtidas a partir da linguagem corporal dos apresentadores. De qualquer forma, a questão neste momento não é se ela é melhor ou pior, mas lidar com a situação como ela é agora. A esperança é que em breve o mundo estará de portas abertas novamente.

Crachás usados pela autora em eventos presenciais antes de março de 2020

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